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Iniciação Científica - Relatório Final

Furo jornalístico: o discurso e o circuito da novidade na Folha e no Estado
(download 4Shared; pdf; 1,1 mb)
Pesquisa realizada com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Bolsista: Flávia Souza de Siqueira
Professora orientadora: Rosana Lima Soares
CJE - ECA - USP


Resumo:


A busca pelo furo jornalístico, sinônimo de “informação exclusiva”, está inserida na rotina da produção noticiosa. Esse princípio implica também na corrida por não se deixar “furar”. Com isso, ao mesmo tempo em que abre espaço para a novidade, a competição pelo furo contribui para a homogeneização do conteúdo de veículos que disputam uma mesma parcela do mercado jornalístico. Para esta análise, trabalhamos com os jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, textos publicados no site Observatório da Imprensa e falas emitidas por jornalistas sobre questões como exclusividade e concorrência. Procuramos, em um primeiro momento, identificar o discurso utilizado pelos veículos para mencionar um furo dado pelo concorrente e para indicar a obtenção de informações exclusivas. Em seguida, analisamos o “caminho”, sob o ponto de vista da construção narrativa, percorrido pela novidade nos dois jornais concorrentes.



Considerações finais:

Ao longo desta análise, tivemos como objetivo identificar os mecanismos pelos quais o furo é discursivamente construído e aceito pelos profissionais da chamada “grande imprensa”, e como ele se insere na construção narrativa jornalística.

Buscamos, primeiramente, responder basicamente à seguinte pergunta: o que faz do furo jornalístico um “tipo especial” de notícia ou reportagem? Pudemos identificar três atributos que lhe fornecem essa peculiaridade: (1) seu caráter de exclusividade; (2) seu caráter retórico, principalmente no que se refere à sinalização de que se trata de material exclusivo e à imputação de uma autoria a ele (auto-referencialidade); e (3) sua capacidade de instaurar um enquadramento aparentemente novo para a apuração e as “novidades” que aparecem no momento posterior – é a “notícia que faz a diferença”, aspecto importante para delimitar o território do furo e o da mera exclusividade.

O furo é um mito da comunidade jornalística, marcado por uma dimensão discursiva que fundamenta e naturaliza uma prática profissional ambígua: busca-se a informação exclusiva ao mesmo tempo em que é necessário evitar que os outros a obtenham. Possui, portanto, um caráter de jogo, no qual é necessário alcançar um determinado objetivo antes dos adversários – como em uma corrida, é necessário sempre estar na frente. Está, assim, diretamente ligado à noção de concorrência. Uma breve análise histórica nos leva a vincular a “origem” do discurso e da prática do furo à consolidação do jornalismo como atividade capitalista e concorrencial. Mas, como parte de um conjunto de crenças consolidado entre os jornalistas, o furo adquire atualmente também um caráter autônomo: ao ser evocado, muitas vezes ele não traz consigo todo esse peso comercial – torna-se algo visto como natural e evidente.

Discursivamente, o furo jornalístico possui uma forte carga retórica. Para ser tomado como furo, ele precisa ser apresentado como tal. A análise feita a partir do corpus selecionado para a primeira fase da pesquisa nos permite concluir que o veículo, ao publicar um furo que julgue como impactante, procura sinalizar seu feito: adota, no caso aqui analisado, elementos gráficos que façam referência ao furo – o exemplo mais evidente é o uso do chapéu Exclusivo.

Ao partirmos, ainda nesse primeiro momento, para uma leitura analítica dos textos, chegamos a outra dimensão retórica do furo jornalístico: a atribuição de uma autoria. No meio concorrencial, a publicação e a divulgação de um furo assumem um caráter de publicidade, que é explorado pelo veículo no interior dos próprios textos jornalísticos – ao empregar expressões de auto-referencialidade, como “Em entrevista exclusiva à Folha/ao Estado”. Essas expressões operam por meio da construção de uma autoria, atribuída principalmente ao veículo e, em menor escala e em circunstâncias específicas, ao jornalista que apurou e escreveu o texto. Vale ressaltar que o que está em jogo não é a construção de uma autoria em torno de textos, e sim em torno do próprio furo, como parte da “obra” (utilizando o conceito de Barthes) atribuída a um veículo (enquanto marca) ou profissional.

Portanto, o aspecto de auto-referencialidade e da auto-promoção contido na divulgação de um furo jornalístico está diretamente ligado à construção (por parte do veículo ou do profissional que “dá o furo”) e ao reconhecimento (por parte dos concorrentes) de uma autoria, que acaba se tornando a peça principal do jogo da exclusividade. Esse “efeito de autoria” funciona a partir da inserção do próprio veículo como personagem do fato narrado – nos casos analisados nesta etapa, a Folha se insere na narrativa como o jornal que veiculou as denúncias de Roberto Jefferson. Trata-se do “autor de papel” de Roland Barthes.

O furo é, antes de tudo, notícia. Como tal, ele deve corresponder ao rol de valores-notícia que orientam a seleção de acontecimentos a serem abordados e sua hierarquização. O valor da exclusividade, entretanto, parece funcionar como uma espécie de licença para amplificar a carga valorativa encontrada no fato. A novidade, por sua vez, atua em outro aspecto do furo jornalístico: aquele que se refere ao nível de “tratamento especial” que receberá o material exclusivo. A partir do grau de novidade contido na matéria exclusiva, os jornalistas definem se ela está ou não contida em um enquadramento prévio, ou seja, o quanto ela está inserida em temáticas já cobertas pelo veículo e seus concorrentes e quão impactante é o espaço que ela ocupa no interior de uma narrativa em curso – com vocação para instaurar um novo enquadramento – ou, antes, se ela é o início de uma nova narrativa potencialmente impactante.

Os jornalistas, como pudemos observar nas entrevistas e nas respostas dadas ao questionário, também evocam o princípio da relevância para definir o que é um furo de reportagem. Esse conceito, contudo, é fluido, e sua definição é mais complexa do que a de exclusividade ou novidade. A relevância somente pode ser entendida a partir do conjunto geral de valores-notícia e, portanto, das rotinas que marcam a atividade de produção nas redações. Ao ser evocada, adquire ares de evidência, ou seja, aparece como mito.

No universo de narrativas construídas pela produção jornalística, que se torna mais semelhante à medida que cresce a relação de concorrência entre os veículos, o furo em seu nível mais celebrado aparece como um lugar privilegiado das narrativas, construído como tal no interior do conjunto de crenças e práticas jornalísticas. São as peculiaridades desse lugar narrativo ocupado pelo material exclusivo que estabelecem uma hierarquia no conjunto de furos publicados: boa parte das matérias publicadas com exclusividade por um veículo não é ostensivamente sinalizada como furo. Outras, apesar de sinalizadas, não ocupam lugar equivalente ao do “furo original”, aquele que foi o primeiro de uma narrativa e que é visto como referência necessária à contextualização das matérias (exclusivas ou não) que seguem a ele.

O que dá ao furo seu caráter especial é, antes de tudo, a leitura que os jornalistas fazem dele e o tratamento que lhe dão. Não são, portanto, características intrínsecas aos acontecimentos. Os profissionais que atuam em jornais concorrentes são profundamente dependentes da leitura feita por seus pares de profissão e, assim, constrói-se uma intertextualidade ou, nas palavras de Michael Schudson, uma coerência inter-institucional: ao vigiarem-se uns aos outros, os veículos constroem em conjunto as narrativas, o que configura a aparência de que existe uma agenda única e natural (evidente) de assuntos.

O conceito apresentado por Schudson nos parece mais adequado para uma interpretação do “circuito da novidade” do que os de homogeneidade e enrijecimento, que havíamos proposto em nosso projeto inicial. À medida que tomamos contato com as reflexões teóricas, enfraqueceu-se, como argumento, idéia de que o furo é um lampejo de novidade ao qual se segue, inevitavelmente, um enrijecimento. As noções de intertextualidade e de coerência inter-institucional são menos simplistas e descrevem melhor o movimento de aproximação verificado entre os veículos jornalísticos, uma vez que remetem a conceitos como intertexto e coerência, essenciais à interpretação que fizemos do “circuito da novidade”.

Esse circuito, que interpretamos tendo em vista a configuração das temáticas jornalísticas como narrativas, é marcado pela coleta e pela organização de relatos. É em seu discurso organizador que os veículos jornalísticos calcam sua legitimidade e sua autoridade. Esse discurso atua como uma moldura para as informações colhidas: é ele que indica o que deve ser lido e como deve ocorrer essa leitura. Esse direcionamento também está presente na definição dos “rumos” das narrativas – na seleção das peças que darão continuidade às narrativas em curso, delineando um caminho específico. Esse caminho tende à semelhança e à coerência inter-institucional, dado o elevado grau de acompanhamento mútuo dos veículos, que se aproximam também em suas rotinas de produção.

Se, por um lado, as rotinas pressupõem a constante busca por fontes que autorizem as informações publicadas, enquanto testemunhas ou especialistas, por outro lado o discurso de auto-referência e auto-promoção tem sua fonte de autoridade em outro local: na própria comunidade jornalística e, em última análise, na legitimidade dos discursos de concorrência e publicidade na sociedade como um todo – para a qual, vale ressaltar, a busca pelo furo aparece como uma das “marcas distintivas” da atividade jornalística.

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